Arquitecturas da Nau Catrineta - 1

A Casa da Música - <em>arquitectura pronta a usar - S, M, XL, XXL</em>

Manuel Augusto Araújo
As guerras de alecrim e manjerona que enfeitaram as danças de nomes para a condução da Casa da Música, até se fixarem na actual equipa de gestão e seus assessores, que se têm remetido a um prudente silêncio, afastaram para plano longínquo as questões maiores do projecto cultural e do projecto de arquitectura. Não são cousas poucas nem despiciendas e é bom relembrar, nas suas linhas mestras, a evolução, da origem ao seu estado actual, da ideia que deu origem à Casa da Música para se (des)entender como se atingiram alguns pontos sem retorno. Originalmente apresentada como o lugar onde caberiam e conviveriam todas as músicas foi, com esse objectivo, lançado um concurso internacional de arquitectura, tendo sido convidadas sete equipas de projectistas. Quatro das equipas convidadas nem sequer apresentaram estudos por considerarem que nem o prazo de construção, final de 2001, nem o valor previsto para a construção, 3,5 milhões de contos, eram acreditáveis, nem o tempo concedido para elaborarem um estudo prévio era aceitável.
Feito o concurso, o projecto seleccionado foi o de Rem Koolhaas. Um projecto desde logo polémico. O projecto de Koolhaas é (parecia ser) um projecto de ruptura com a morfologia urbana, um meteorito, no dizer de Souto Moura, que arrasava tudo à volta. A muitos e densos textos teóricos daria origem se, de supetão, não se tivesse conhecido que a Casa da Música tinha resultado simplesmente da ampliação da moradia unifamiliar Y2K, que Koolhaas tinha projectado para Roterdão e que reutilizou para o Porto - não lhe deve ter aparecido entretanto mais nada para fazer senão o meteorito teria certamente ido cair alhures no mundo com outras volumetrias, outros acabamentos e outros usos - mudando-lhe a escala o que, com os meios tecnológicos actuais, se faz mais rápido que o pensamento, com um único objectivo: fazer caber dentro do objecto as áreas exigidas pelo programa e... facturar.
A «pele» da construção mudou do vidro, a forma cristalina na escala do projecto original seria o fundamento, para o betão, com grande e despudorada facilidade, porque deixaram de ser necessárias analogias desde que o projecto vendesse. Para que os objectivos fossem alcançados só foi preciso substituir um conteúdo programático, o da moradia unifamiliar , por outro conteúdo programático, o da casa da Música.
O culminar deste festejado processo rasga novos caminhos no exercício da profissão de arquitecto: pensar os projectos começa a ser supérfluo e as justificações teóricas elaboram-se à posteriori, de preferência com uma linguagem pesadamente obscura de modo a não se perceber nada, o que permite retirar um mundo de brilhantes e ocas conclusões. Processos bem reveladores do vale tudo, num tempo em que a cultura, na sua mais ampla acepção, anda em deriva e em que cinicamente tudo se aceita, desculpa e justifica com grande ligeireza mas com o firme propósito desideologizante de diluir o saber cultural na mediatização do marketing cultural.
Os promotores da Casa da Música no seu afã de construírem depressa essa maravilha fatal do Porto 2001, prometem ao arquitecto um bónus de mais 25% sobre os honorários se cumprisse os prazos estipulados no contrato. Originalidade que deveria fazer jurisprudência e ser integrada, por exemplo, nos contratos de trabalho: quem cumpre o horário de trabalho passaria a ter o direito de receber mais 25% sobre o ordenado.
A imoralidade é total e os preços iniciam o seu percurso inexorável e ascendente. Primeiro salto mais 70%, o custo «fixa-se» em 6 milhões de contos. Com a proximidade do fim de 2001, nada de ver o monstro à superfície, a novidade é mais uma rectificação do custo que é «fixado» em 8 milhões de contos, mais 130% do que estava consignado no concurso e que era um dos pressupostos com que Koolhaas se tinha comprometido, releiam-se os motivos de escusa do concurso de outras equipas projectistas e relembre-se que Vitrúvio propugnava a prisão para os arquitectos cujas estimativas fossem metade dos custos efectivos de construção. Outros tempos, outros padrões éticos.
Entra então no conhecimento público que a estrutura dos pisos de estacionamento não coincide com a estrutura da Casa da Música, com as consequências que todos, mesmo os mais leigos no assunto, calculam. O projectista, certamente por falta de experiência e senso, não reparou no pormenor do modelo da Casa da Música, a tal moradia unifamiliar, não dispor de estacionamento enterrado e muito menos para 700 viaturas. Além de ser evidente que a estrutura de uma construção não é elástica, não absorve automaticamente qualquer multiplicação aritmética da dimensão.
Esse momento é um momento crucial. O que estava construído, parte do estacionamento, era pouco em relação ao total da obra e podia ser reaproveitado. Já ninguém acreditava em prazos e custos. Em nome da credibilidade e da seriedade do projecto haveria que ter a coragem de por em causa todo o processo e fazer reverter a favor do Porto as teorias de ruptura tão do agrado de Koolhaas, rompendo com um projecto que passando da dimensão S para XXL, tem por único e supremo valor conceptual o de introduzir na arquitectura o princípio das ma­tri­oskas ou dos tup­perwares.


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